fonte: Folha de SP
Há exatamente dois anos, a atenção primária à saúde (APS) do Brasil era aclamada em uma conferência da OMS (Organização Mundial da Saúde), em Astana, no Cazaquistão, por delegações de 194 países.
Inúmeras conquistas são atribuídas ao Estratégia Saúde da Família, como quedas históricas nas mortes infantis e maternas e redução de hospitalizações. O programa acaba de completar 25 anos e cobre 60% da população.
A atenção básica é a principal porta de entrada do SUS e está presente em todo o país. Durante a pandemia de Covid-19, nos municípios com uma APS organizada e fortalecida, houve não só um número menor de infectados e mortos, devido ao trabalho de vigilância e rastreamento dos casos, como os demais pacientes com outros problemas de saúde continuaram sendo cuidados.
No entanto, a cobertura ainda é considerada insuficiente e pouco resolutiva na maior parte dos municípios brasileiros. Nas regiões Norte e Nordeste, estima-se que cerca de 40% das internações são de condições que poderiam ter sido evitadas se tivessem sido mais bem cuidadas na atenção básica.
Há várias propostas para tentar melhorar esse cenário com mesmos recursos que se tem hoje. A mais recente é encabeçada pelo IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) e traz dez sugestões para os novos prefeitos a partir de exemplos concretos de municípios que tornaram a APS mais efetiva.
Uma delas é a adoção de medidas capazes de reduzir as filas de espera, uma das principais queixas dos usuários do SUS. Por exemplo, equipar os postos com uma estrutura básica, como eletrocardiogramas e materiais para suturas, e apoio técnico remoto de especialistas para evitar encaminhamentos desnecessários e longo tempo de espera.
A despeito das falhas, muitas causadas por subfinanciamento e má gestão, o modelo de atenção primária do SUS é considerado um sucesso e inspirou operadoras de saúde a trilhar o mesmo caminho, com intuito de melhorar a eficiência e reduzir custos da assistência.
Muitos médicos de família que antes atuavam no SUS estão hoje em programas de atenção básica dos planos, aplicando os conhecimentos que acumularam na rede pública.
A avaliação é que a saúde privada oferece uma assistência fragmentada, com pacientes passando por vários especialistas, fazendo inúmeros exames desnecessários.
Uma equipe de atenção primária bem capacitada e com uma boa estrutura física disponível é capaz de resolver até 80% das queixas dos pacientes, como mostra a literatura internacional.
Para os planos, isso passou a ser um bom negócio não só para sua clientela, mas também visando eventuais parcerias com o setor público.
É nesse contexto que está inserido o decreto 10.530, publicado no Diário Oficial desta terça (27), que coloca atenção primária na mira do programa de concessões e privatizações, que foi revogado menos de 24 horas depois.
Do ponto de vista administrativo e jurídico, a terceirização da saúde pública existe e hoje já acontece no SUS por meio das Organizações Sociais e PPPs (Parcerias Público Privadas), onde o poder público repassa os recursos e o setor privado executa os serviços.
A primeira experiência com PPP na saúde pública data de 2010 com a construção do Hospital do Subúrbio, em Salvador (BA). É um hospital geral público estadual, de gestão privada, e que acumula vários prêmios pela qualidade da assistência.
Mas quando se trata de toda a atenção primária, a questão é muito mais complexa. Equipes de saúde da família estão hoje nos rincões empobrecidos do país, têm articulação com as comunidades, estabelecem vínculos com os pacientes.
Só assim há de fato promoção de saúde e prevenção de doenças. São competências muito distantes do escopo da saúde privada. E que não vão acontecer por meio de um decreto.